domingo, 2 de outubro de 2011

LINHA 442 ( LINS - URCA )

( Esta linha de ônibus foi desativada há muito tempo, anos 80, se não me engano. Muitas coisas aconteceram no interior dos seus veículos. Quem vai contar? )

          Ô país este Brasil! Labutei, labutei muito, dos dourados anos sessenta até o chumbo dos setenta. Quando acharam que eu não era mais necessário, fim da linha, me recolheram nesta espécie de asilo e, depois, me passaram adiante. Política da empresa. Ter que voltar a trabalhar, igual a tantos por aí, tudo bem. Razões econômicas. O ruim foi a mudança de percurso.

          O melhor me tiraram: passar pelas praias. Todos os dias, com chuva ou sol, meu trabalho começava no Lins de Vasconcelos, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, e ia até a Urca, na zona sul. Nesse meio, havia Grajaú, Vila Isabel, Maracanã, Praça da Bandeira, Centro, até chegar à orla, Flamengo, Botafogo, Praia Vermelha.

          Tenho é coisa para contar e, como dizem que quem conta um conto aumenta um ponto, é mais uma parada que eu faço. Afinal, é minha obrigação pegar quem espera por mim.

          Eu levava estudantes e trabalhadores. Colégio Pedro II, padarias, Colégio Militar, restaurantes, Instituto de Educação, bancos, UFRJ, empresas. Eram normalistas, secundaristas e universitários misturando-se com garçons, vendedores e funcionários, com aquelas fisionomias de quem tem um dever a cumprir. Ouvia suas conversas sobre obrigações e tarefas. Eu também fazia a minha parte burocraticamente, talvez contaminado por esse estado de espírito.

          Ah, mas quando chegava o verão, tudo mudava. Era outro astral. Outros papos. Parecia que todo mundo tirava férias e os que iam trabalhar sabiam que tinham que conviver com trajes e apetrechos praianos, pois o mar era o limite.

          Era bom ver namoros começando depois da paquera, ouvir as fofocas, os casos, relatos de afogamento, sentir o cheiro de suor misturado com óleo Dagelli ou Rayto de Sol. Eu ficava cheio de areia e farelos de lanche, impregnados de maresia.

          Não existia arrastão, era só quando a Elis Regina cantava. No máximo, furtos e mão boba, às vezes acompanhados de brigas e discussões. Vi pessoas passarem mal e até um que morreu, tristes lembranças. Vida que segue.

          Eu gostava especialmente de um grupo de jovens que moravam numa mesma rua, no Lins. Na ida e na volta, andavam até o ponto final, para viajarem sentados, pois até a Praia Vermelha, era chão! Encarnavam um no outro e nas pessoas que, porventura, cometiam algum deslize, tal como tropeçar, vestir-se de maneira estranha ou apenas fugir do tipo comum. Alguns passageiros faziam cara feia, mas, para mim, as brincadeiras e as risadas eram a maneira que eles encontraram de se despedir da irresponsabilidade da juventude para entrar na seriedade da vida adulta. Para irritar as amigas, gabavam o corpo escultural de uma loura que ficava perto deles na areia e, quando eu passava pela Praça Quinze, com aquele odor característico de peixe, mandavam, com suas vozes tonitruantes, que elas fechassem as pernas. "Raquel" era um dos muitos apelidos aplicados: foi para a colega que, para não ter que dividir o bronzeador, colocou-o numa pequena embalagem de Lavolho, um conhecido colírio. Um deles não quis ceder o lugar para uma mulher com o bebê no colo e pediu para segurá-lo. Não deu outra: assim que ele pegou, o guri vomitou nos dois. Todo sujo, entre gargalhadas e uma canção bem nojenta (peço licença para não cantar), teve que levantar e foi em pé até em casa. Bando de gozadores!

          Mas a pessoa mais especial para mim foi o Tião. Era bem preto, gordinho e um paquerador inveterado. Deixava as mulheres sem graça, quando arqueava as sobrancelhas repetidamente e dizia bem alto "Quer que eu entre na sua rua?"  É, o Tião era o motorista. Aliás, o melhor que me conduziu. Nas mãos dele, não tive um arranhão sequer.

          Vocês estavam pensando...? Não! Entenderam agora? Sou um bem conservado veículo coletivo, também chamado de ônibus. Para os íntimos, Mercedes com chofer. Estou velho, mas ainda dou bom caldo. Só que Greta Garbo, quem diria, acabou em Nova Iguaçu. Meu nome agora é Pirata, Ônibus Pirata Central-Nova Iguaçu. Longe de mim desfazer da Baixada, mas depois de tanto tempo de serviço, achei que seria promovido. Uniria o útil ao agradável levar o povão de lá a Copacabana, Ipanema ou Barra. E eu voltaria a ver o mar. Tenho grande amor pelo mar. Olhar para ele ajuda a dividir as cargas pesadas da vida. Suas águas calmas ou de ressaca são como uma mulher, com as fases determinadas pela lua. Pensando bem, não devia ser O MAR, e, sim, A MAR.

          A MAR? AMOR? LUA? Depois de velho e pirata, virei romântico. Romântico só fala bobagem. Vamos trabalhar. Foooon, foooon!

6 comentários:

  1. Engraçado que lembro bem da linha 442, apesar de ser bem mais novo né? - Beijos

    ResponderExcluir
  2. Saudades da nossa juventude ,que só as nossas recordações nos levam nessa viagem no tempo.Valeu Regina.

    ResponderExcluir
  3. Como era bom ir para a praia de Lins-Urca, a viagem de ida era mais calma, pois tinhamos que dividir o 442 com os que iam para o trabalho,mas na volta o busão era só nosso e era aquela zorra.
    Bons tempos!!!
    bjs
    Paulinho

    ResponderExcluir
  4. Os textos são excelentes e muito criativos.
    Você escreve muito bem e não poderia ser diferente, considerando que você sempre foi uma ótima professora de língua portuguesa.
    É interessante que a linha 442 era a única que passava por toda a rua Lins. Atualmente é a linha 232(Lins-Praça XV) que continua correndo atrás do tempo.
    Beijos,
    Fátima

    ResponderExcluir
  5. Genial Regina!Só você para fazer a gente lembrar daquela época da nossa juventude no Lins-Urca! Ri muito e a maneira como você colocou o ônibus contando nossas aventuras ficou DEMAIS!PARABÉNS!Bjs Lena

    ResponderExcluir
  6. Adorei, lembrei de tudo que se passava no ônibus exatamente como vc descreveu. Viajei muito nessa linha, todos os finais de semana. E depois na volta, íamos mesmo a pé até o final da linha pra voltarmos sentados!! Foi pelo menos uma década de alegria. Flamengo P. Vermelha ou Urca sempre estávamos lá !!!!!!!

    ResponderExcluir