segunda-feira, 17 de outubro de 2011

JUSTIFICATIVA DE DEMISSÃO

( Vocês já perderam o emprego? Que desagradável! Não se preocupem, até os deuses são demitidos. )

          Senhores Deuses Diretores do Olimpo:

          Conforme solicitado, apresento este relatório sobre a demissão da Semideusa Raimunda, encarregada do Brasil.

          Permitam que me apresente: Themis, Deusa da Justiça. Sou a segunda mulher de Zeus, o Deus superior. Todos já devem ter visto a minha estátua, em frente a palácios, ministérios e tribunais de justiça. Com uma venda nos olhos, seguro, numa das mãos, uma balança e, na outra, um vaso sob a forma de corno (não é do Zeus, juro!), que simbolizam, respectivamente, imparcialidade, equilíbrio e riqueza.

          Não é fácil ser justo. É andar na corda bamba, onde os pratos da balança puxam cada um para o seu lado. Acusação, defesa, culpado, inocente. Para me auxiliar, convoquei um semideus para cada país. Todos iam relativamente bem, até que a acima nomeada começou a se exceder em suas atribuições.

          Alega Raimunda, originária do estado da Paraíba, que justiça, no referido país, tarda e falha; não é cega e, sim, míope, fazendo vista grossa e enxergando quando convém. Entretanto, não se pode esquecer que dura lex, sed lex, no cabelo só Gumex. Desculpem a gracinha! Retiro a última frase.

          A situação judicial brasileira explica, mas não justifica suas atitudes. Tornou-se uma JUSTICEIRA! Parecia um Charles Bronson de túnica. Não é por aí.

          Começou com um assaltante a mão armada que estava à solta: colou suas mãos com Super-Bonder! Capou com a peixeira um estuprador que, apesar de várias denúncias, não conseguiam prender. Pegou um desses pedófilos da Internet, trancou-o num cubículo, obrigando-o a assistir a um clipe do Michael Jackson fazendo "Uh!", o dia todo, durante uma semana. Criou uma tempestade que destruiu todos os produtos e bancas de camelôs do país. Jogou furacões (que nem existem no Brasil) em grupos de invasores que já formavam favelas-comunidades em florestas preservadas: foram arrastados para o meio do deserto, no planalto central. E ainda forçou uns políticos corruptos a comerem uma buchada de bode, bem regada com azeite de dendê e pimenta malagueta: sujaram até o colarinho branco! Paro por aqui porque a lista é grande.

          Senhores, é muita a tentação de dar-lhe apoio, porém fui obrigada a puni-la exemplarmente. Nada de justiça com as próprias mãos! O povo de lá transformou-a numa super-heroína para combater a impunidade. Aplaudiam seus atos e queriam elegê-la Presidente da República. Mulher macho, sim, senhor!

          Antes que as coisas fugissem ao controle, decidi tirá-la de suas funções. Ela foi, então, transferida para o Departamento de Eros, Deus do Amor. A dita cuja já começou a meter a colher em alguns relacionamentos amorosos em crise. Não quero nem saber! Julguem por vocês.

                                                                            Atenciosamente,
                                                                            Themis, Deusa da Justiça

domingo, 2 de outubro de 2011

LINHA 442 ( LINS - URCA )

( Esta linha de ônibus foi desativada há muito tempo, anos 80, se não me engano. Muitas coisas aconteceram no interior dos seus veículos. Quem vai contar? )

          Ô país este Brasil! Labutei, labutei muito, dos dourados anos sessenta até o chumbo dos setenta. Quando acharam que eu não era mais necessário, fim da linha, me recolheram nesta espécie de asilo e, depois, me passaram adiante. Política da empresa. Ter que voltar a trabalhar, igual a tantos por aí, tudo bem. Razões econômicas. O ruim foi a mudança de percurso.

          O melhor me tiraram: passar pelas praias. Todos os dias, com chuva ou sol, meu trabalho começava no Lins de Vasconcelos, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, e ia até a Urca, na zona sul. Nesse meio, havia Grajaú, Vila Isabel, Maracanã, Praça da Bandeira, Centro, até chegar à orla, Flamengo, Botafogo, Praia Vermelha.

          Tenho é coisa para contar e, como dizem que quem conta um conto aumenta um ponto, é mais uma parada que eu faço. Afinal, é minha obrigação pegar quem espera por mim.

          Eu levava estudantes e trabalhadores. Colégio Pedro II, padarias, Colégio Militar, restaurantes, Instituto de Educação, bancos, UFRJ, empresas. Eram normalistas, secundaristas e universitários misturando-se com garçons, vendedores e funcionários, com aquelas fisionomias de quem tem um dever a cumprir. Ouvia suas conversas sobre obrigações e tarefas. Eu também fazia a minha parte burocraticamente, talvez contaminado por esse estado de espírito.

          Ah, mas quando chegava o verão, tudo mudava. Era outro astral. Outros papos. Parecia que todo mundo tirava férias e os que iam trabalhar sabiam que tinham que conviver com trajes e apetrechos praianos, pois o mar era o limite.

          Era bom ver namoros começando depois da paquera, ouvir as fofocas, os casos, relatos de afogamento, sentir o cheiro de suor misturado com óleo Dagelli ou Rayto de Sol. Eu ficava cheio de areia e farelos de lanche, impregnados de maresia.

          Não existia arrastão, era só quando a Elis Regina cantava. No máximo, furtos e mão boba, às vezes acompanhados de brigas e discussões. Vi pessoas passarem mal e até um que morreu, tristes lembranças. Vida que segue.

          Eu gostava especialmente de um grupo de jovens que moravam numa mesma rua, no Lins. Na ida e na volta, andavam até o ponto final, para viajarem sentados, pois até a Praia Vermelha, era chão! Encarnavam um no outro e nas pessoas que, porventura, cometiam algum deslize, tal como tropeçar, vestir-se de maneira estranha ou apenas fugir do tipo comum. Alguns passageiros faziam cara feia, mas, para mim, as brincadeiras e as risadas eram a maneira que eles encontraram de se despedir da irresponsabilidade da juventude para entrar na seriedade da vida adulta. Para irritar as amigas, gabavam o corpo escultural de uma loura que ficava perto deles na areia e, quando eu passava pela Praça Quinze, com aquele odor característico de peixe, mandavam, com suas vozes tonitruantes, que elas fechassem as pernas. "Raquel" era um dos muitos apelidos aplicados: foi para a colega que, para não ter que dividir o bronzeador, colocou-o numa pequena embalagem de Lavolho, um conhecido colírio. Um deles não quis ceder o lugar para uma mulher com o bebê no colo e pediu para segurá-lo. Não deu outra: assim que ele pegou, o guri vomitou nos dois. Todo sujo, entre gargalhadas e uma canção bem nojenta (peço licença para não cantar), teve que levantar e foi em pé até em casa. Bando de gozadores!

          Mas a pessoa mais especial para mim foi o Tião. Era bem preto, gordinho e um paquerador inveterado. Deixava as mulheres sem graça, quando arqueava as sobrancelhas repetidamente e dizia bem alto "Quer que eu entre na sua rua?"  É, o Tião era o motorista. Aliás, o melhor que me conduziu. Nas mãos dele, não tive um arranhão sequer.

          Vocês estavam pensando...? Não! Entenderam agora? Sou um bem conservado veículo coletivo, também chamado de ônibus. Para os íntimos, Mercedes com chofer. Estou velho, mas ainda dou bom caldo. Só que Greta Garbo, quem diria, acabou em Nova Iguaçu. Meu nome agora é Pirata, Ônibus Pirata Central-Nova Iguaçu. Longe de mim desfazer da Baixada, mas depois de tanto tempo de serviço, achei que seria promovido. Uniria o útil ao agradável levar o povão de lá a Copacabana, Ipanema ou Barra. E eu voltaria a ver o mar. Tenho grande amor pelo mar. Olhar para ele ajuda a dividir as cargas pesadas da vida. Suas águas calmas ou de ressaca são como uma mulher, com as fases determinadas pela lua. Pensando bem, não devia ser O MAR, e, sim, A MAR.

          A MAR? AMOR? LUA? Depois de velho e pirata, virei romântico. Romântico só fala bobagem. Vamos trabalhar. Foooon, foooon!